O que é o artigo 142 da Constituição

Presidente e seus apoiadores recorreram a um artigo da Constituição para tentar justificar a ideia de que existe possibilidade constitucional de intervenção militar, mas juristas dizem que tese é ‘absurda’.A reportagem abaixo, publicada originalmente em junho de 2020, voltou a ter expressiva circulação em outubro de 2022, com aumento de buscas pelo termo “artigo 142”. Ele foi citado por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro que ficaram descontentes com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na eleição de 2022.

Esse artigo da Constituição costuma ser citado quando bolsonaristas pedem “intervenção das Forças Armadas” – o próprio Bolsonaro fez essa relação em 2020, como mostra a reportagem abaixo.

O artigo 142 não trata de divisão entre os poderes, mas descreve o funcionamento das Forças Armadas. E, segundo constitucionalistas, em nenhum momento ele autoriza qualquer poder a convocá-lo para intervir em outro.

O vídeo da reunião ministerial do governo Bolsonaro foi divulgado em meados de maio, mas continua a ter desdobramentos. Um dos principais envolve a referência que o presidente Jair Bolsonaro fez ao artigo 142 da Constituição Federal, citando a possibilidade de “intervenção” no país.

“Nós queremos fazer cumprir o artigo 142 da Constituição. Todo mundo quer fazer cumprir o artigo 142 da Constituição. E, havendo necessidade, qualquer dos Poderes pode, né? Pedir às Forças Armadas que intervenham para restabelecer a ordem no Brasil”, disse Bolsonaro na reunião.

Depois disso, o artigo começou a ser citado por apoiadores do presidente para defender a tese de que as Forças Armadas seriam uma espécie de mediador da queda de braços entre o presidente e o STF (Supremo Tribunal Federal), que autorizou investigações envolvendo filhos de Bolsonaro. Nessa visão, o presidente poderia convocar os militares para intervir no Poder Judiciário.

O advogado Ives Gandra Martins também defendeu essa tese. No entanto, essa interpretação é considerada totalmente equivocada por juristas e professores de direito não ligados ao governo e pelo ministro Luis Fux, do Supremo Tribunal Federal.

As falas citando o artigo 142 levaram a uma proposição de ação no STF sobre o assunto. Em decisão liminar em 12 de junho, o ministro Fux delimitou a interpretação do artigo, reforçando que a prerrogativa do presidente de autorizar o emprego das Forças Armadas não pode ser exercida contra os outros dois Poderes.

Mas afinal, o que diz o artigo e o que ele significa?

Regramento militar

O artigo 142 da Constituição não trata de divisão entre os poderes, mas descreve o funcionamento das Forças Armadas. Segundo constitucionalistas, em nenhum momento ele autoriza qualquer Poder a convocá-lo para intervir em outro.

O texto é o seguinte:

“As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”

Roberto Dias, professor de direito constitucional da FGV-SP (Fundação Getúlio Vargas), diz que “essa interpretação de que esse artigo seria uma autorização para uma intervenção militar é absurda”.

“É como se a Constituição previsse sua própria ruptura, e logicamente é algo que não faz sentido. É uma interpretação jurídica, política e logicamente insustentável”, diz ele.

Uma intervenção militar é uma ruptura da ordem constitucional, explica Dias, porque a separação e independência de poderes e as garantias individuais são as principais bases da Carta.

A professora de direito Vania Aieta, da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), explica que o fato de o artigo estabelecer as Forças Armadas sob a autoridade do presidente da República permite que ele o acione em caso de guerra com outros países, ou em casos como auxílio à grandes eventos, como na Copa do Mundo. Mas não dá à ele o direito de intervir em outros Poderes — muito pelo contrário, diz explicitamente que “são instituições nacionais permanentes e regulares” destinadas à “garantia dos poderes constitucionais”, não à intervenção neles.

E, para qualquer uso, presidente precisa da autorização do Congresso.

Na decisão liminar de 12 de junho, o ministro do STF Luis Fux diz que é ‘óbvio’ que a Constituição não dá ao presidente poderes para romper com a ordem constitucional. Ele esclarece que a autoridade do presidente da República é “suprema em relação a todas as demais autoridades militares mas, naturalmente, não o é em relação à ordem constitucional”.

“A ‘autoridade suprema’ sobre as Forças Armadas do Presidente da República (…) por óbvio, não se sobrepõe à separação e à harmonia entre os Poderes, cujo funcionamento livre e independente fundamenta a democracia constitucional, no âmbito da qual nenhuma autoridade está acima das demais ou fora do alcance da Constituição”, escreve Fux.

Em resposta, o Planalto publicou uma nota conjunta do presidente Bolsonaro, do vice Hamilton Mourão e do general Fernando Azevedo, do Ministério da Defesa.

“As FFAA não cumprem ordens absurdas, como p. ex. a tomada de Poder. Também não tentativas de tomada de Poder por outro Poder da República, ao arrepio das Leis, ou por conta de julgamentos políticos”, diz a nota.

Manifestantes protestaram contra o presidente em São Paulo
Manifestantes protestaram contra o presidente em São Paulo

Foto: AFP / BBC News Brasil

Para a professora de direito Vania Aieta, da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), a interpretação já demonstrada por Bolsonaro vem de uma “confusão entre o que é governo e o que é Estado”.

“É uma compreensão errônea que o presidente tem. Ele não faz uma distinção entre o público e o privado — sempre fala ‘meu Exército, meu tribunal, meu procurador-geral’, como se fosse incorporado um caráter privado à essas funções, como se estivessem ligadas à pessoa de Bolsonaro, e não ao cargo de Presidente da República”, diz ela.

“Bolsonaro não conhece o que é governo e o que é administração pública.” Governos são formados por representantes do povo, eleitos a cada quatro anos, e têm caráter transitório. Já a administração pública são as políticas de Estado, ou seja, têm caráter permanente.

“As Forças Armadas pertencem ao Estado brasileiro, não para satisfazer desejos pessoais do presidente”, diz Aeita.

Também houve manifestações a favor do presidente
Também houve manifestações a favor do presidente

Foto: AFP / BBC News Brasil

A professora de direito constitucional da UFPR (Universidade Federal do Paraná) Estefânia Barboza reforça essa análise.

“De maneira nenhuma pode-se imaginar que as Forças Armadas são do presidente em proveito dele, da família dele. Porque a questão está sendo colocada (e gerando atritos) é a investigação sobre os filhos”, afirma.

Não existe Poder Moderador

A fala do presidente e a forma como o artigo tem sido usado por seus apoiadores, diz Roberto Dias, da FGV-SP, tentam fazer parecer “como se houvesse uma previsão constitucional que dá às Forças Armadas a função de um poder moderador”.

Para Gandra Martins, em artigo publicado no site Conjur no último dia 28, a Constituição prevê que “se um Poder sentir-se atropelado por outro, poderá solicitar às Forças Armadas que ajam como Poder Moderador para repor, naquele ponto, a lei e a ordem, se esta, realmente, tiver sido ferida pelo Poder em conflito com o postulante”.

Mas a decisão liminar do ministro do STF Luis Fux de 12 de junho, feita em resposta a processo aberto pelo PDT, impede esse tipo de interpretação.

“O emprego das Forças Armadas (…) presta-se ao excepcional enfrentamento de grave e concreta violação à segurança pública, em caráter subsidiário, após esgotamento dos mecanismos ordinários (…), mediante a atuação colaborativa das instituições estatais e sujeito ao controle permanente dos demais poderes.

O ministro Dias Toffoli já havia deixado claro que tem a mesma visão de Fux.

“Não há lugar para quarto poder”, disse Toffoli em 9 de junho. “As Forças Armadas sabem muito bem que o artigo 142 não lhes dá poder moderador. Tenho certeza de que as Forças Armadas são instituições de Estado, que servem o povo brasileiro, não instituições de governo.”

Juristas não ligados ao governo explicam que a previsão de um poder morador não existe na legislação brasileira há cerca de 200 anos. O Poder Moderador era previsto na Constituição do Império de 1824, e funcionava como mediador entres os três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) em caso de divergências, dando a última palavra.

“Estamos na vigência da Constituição de 1988, que não prevê um poder que estaria acima dos outros para intermediar. A Constituição não dá às Forças Armadas o poder de intervenção militar em outros poderes”, diz Dias. “O presidente tem 200 anos de atraso na sua interpretação da Constituição.”

Protesto terminou em confronto com a Polícia Militar
Protesto terminou em confronto com a Polícia Militar

Foto: Getty Images / BBC News Brasil

“A Constituição de 1989, explica, prevê a separação dos Poderes para haver um controle do Poder pelo próprio Poder, pela própria interação entre eles. As Forças Armadas não estão nesse jogo, elas não fazem parte do jogo político”, explica Dias.

Estefânia Barbosa, da UFPR, diz que justamente por isso o número de militares nomeados para o alto escalão do governo Bolsonaro é “preocupante”. “As Forças Armadas não podem ser governo, porque elas tem que ser neutras.”

Barbosa explica que não existe previsão na Constituição de o Exército atuar contra o exercício legítimo do Poder Judiciário.

“A possibilidade de um dos poderes convocar as Forças Armadas existe, por exemplo, caso haja um ataque armado de militantes ao Supremo, ao Congresso, à Presidência da República — eles podem chamar para se defender. Mas de maneira nenhuma esse artigo justifica o ataque de um poder ao outro”, explica Barbosa, da UFPR.

“Isso é o que acontece em países autoritários, com o regime do ex-presidente Alberto Fujimori no Peru e hoje no regime da Venezuela”, diz.

Os constitucionalistas afirmam que existem diversas hipóteses para a interpretação do presidente.

“Ele pode estar juridicamente mal assessorado, com pessoas que escolhem submissão total por focar em um indicação ao Supremo”, diz Vania Aeita, da UERJ.

Já Roberto Dias, da FGV-SP, diz que a hipótese mais provável é que o presidente “pretenda dar um verniz de legalidade para uma possível intervenção militar”.

“Uma intervenção com essa justificativa seria um golpe sem dizer que é golpe”, afirma.

“É o que explicam diversos estudiosos sobre como governos derrubam a democracia sem golpe”, diz Dias, citando o professor de Harvard Steven Levitsky, autor do livro Como as Democracias Morrem.

“Você vai corroendo a democracia por dentro, destruindo as instituições, dando verniz de legalidade. Mas é evidente que a Constituição não está prevendo sua autodestruição”.

 

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